Devir é um conceito da Filosofia e denomina transformação intensa da vida, a partir dos encontros que construímos. Inspirados por este conceito, oferecemos nosso espaço e nosso trabalho para que possamos produzir transformações, as quais sejam por uma vida alegre, criativa e engajada social, política, ecológica e eticamente.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Anular a cidadania de direito

                                                                            Por Pedro Costa e Fernando Yonezawa

Esta semana, gostaríamos de dar pitaco sobre as eleições, dada a sua proximidade. Existem alguns vídeos e textos avulsos por aí na internet, de varias pessoas falando sobre o voto, em especial o voto nulo.
Algumas defendendo esse tipo de voto e outras falando os motivos pelos quais não seria bom votar assim...
Esse texto é para expor motivos bem particulares e, até certo ponto apressados, para não votar.
Talvez, existam pessoas que possam se identificar com a ideia e outras que pelo menos vão pensar a questão por outra perspectiva... O mais importante é iniciar uma discussão, onde outros poderão expor seus motivos e criticar os nossos.



Na maioria dos vídeos, correntes, emails espalhados pela internet e em conversa que temos com as pessoas, aquelas que defendem o voto nulo, se baseiam naquela ideia, que já foi muito discutida, de que se a maioria dos votos fosse nula a eleição seria cancelada e os candidatos atuais não poderiam se reeleger e teriam que haver outros candidatos e blá blá blá. É esperado que saibam que essa ideia é falsa (ou não completamente correta). Não existe nenhuma lei que preveja isso, e na verdade essa concepção veio de uma interpretação errônea da legislação. Não cabe entrar em detalhes jurídicos aqui (deixemos isso para os juristas de plantão), quem ainda acredita nisso e tem dúvida, vá pesquisar. Aliás, além de ser uma utopia pensar na anulação de uma eleição inteira, seria bastante ingênuo acreditar que a simples troca de candidatos faria vislumbrar alguma solução. Se não houver de fato uma transformação política, ou melhor, uma transformação na relação política, não há o que se faça que possa introduzir diferenças reais aos seus problemas.

Logicamente, não se deve ter como base essa ideia falsa de que é possível anular uma eleição, para se votar nulo. Na verdade o voto nulo é justificado em questões mais profundas e estruturais (“juridicismos” não são profundos, sinto muito). Está mais ligado a uma descrença na política - ou pseudo-política, politicagem, politicalha - eleitoreira imposta pela lógica estatal que opera por meio de uma democracia representativa. Na verdade, quem vota nulo esperando alguma resposta estatal como o cancelamento das eleições ou sei lá, está cometendo o mesmo erro, pois está preso na mesma teia de mentiras. Mentiras que produzem um efeito real e uma realidade, inclusive uma realidade afetiva.

Eis 3 motivos fundamentais para votar nulo:

1º) Por não acreditar em democracia representativa, pois essa modalidade de governança vai contra a própria ideia de democracia em sua máxima amplitude. Porque se é o povo que governa, nenhum individuo que o compõe poderia outorgar, ou alienar a sua capacidade de governar a terceiros. Então se anula o voto por não acreditar que alguém tenha autoridade ética, política, intelectual ou existencial para representar o outro em qualquer dimensão da vida. Bem diz Deleuze logo no início de seu "Diferença e Repetição" que o pensamento da representação julga ser possível que os termos de uma relação sejam substituíveis, porque seriam equiparáveis. Quer dizer, todo o pensar da democracia representativa apresenta uma contradição à vida e ao exercício da cidadania na vida, pois parte do pré-suposto de que existe uma igualdade entre os sujeitos, mas que é uma igualdade abstrata, apenas igualdade de direito e que nos identifica a uma imagem jurídica de cidadania (não a uma potência cidadã ou a uma cidadania enquanto ação real sobre o espaço público). A igualdade é o primeiro erro da democracia representativa, mas há ainda outro erro. A representação só pode ser representação na medida em que instala uma generalidade sobre os assim chamados cidadãos: o senso comum e/ou o bom senso, enquanto sejam pré-concebidos como sensos que todos têm e que todos sabem (e podem) exercer. Mas, diz o mesmo Deleuze, que a generalização é um pensamento particular, isto é, dizer que todos são dotados de senso é já uma abstração, uma imagem representada daquilo que seja a potência de agir e de ser. Assim, só eu sou capaz de me colocar no palanque e a interposição de terceiros sempre passará por interesse de terceiros que naturalmente representam a si mesmos. Portanto, a rigor, não há erro em um político governar em nome de seus interesses. O erro está em se imaginar uma possível representatividade deste governante em relação a nós. Deve-se reforçar a crença em ação direta e em um debate no qual meus interesses e opiniões são decididas e expostas por mim mesmo. Nesse caso, votar nulo, ou não votar é um ato de cidadania, pois recupera para si a responsabilidade sobre sua vida e sobre o mundo, alterando a balança do exercício de poder. Anular o voto ou se anular? A escolha é sua. É uma decisão também existencial... 

2º) Eleição é um jogo da marionete da esquerda contra a marionete da direita. Isso quer dizer, na verdade, que tais candidatos cumprem uma agenda muito além do âmbito político-governamental. O aspecto – espectro - econômico conta muito. Em primeiro momento, muito obviamente, é o interesse econômico de seus patrocinadores de campanha. Eles vão sempre governar para os seus investidores ou seja eles se servem do capitalismo. Mas o que realmente importa aqui é o modo de produção no qual o Estado está inserido. Nesse momento, ele serve a esse modo de produção capitalista. Aquela velha (surrada e amarrotada) ideia marxista cabe bem aqui, pois o Estado serve para impedir a luta de classes, manter o proletariado, proletariado e a classe dominante dominando. Resumindo, quem "manda" ou "governa" o país são os grandes empresários multinacionais, os banqueiros e os latifundiários, isso em conluio com as mídias de massa e a industria cultural. No final das contas, votar na marionete não faz a mínima diferença, pois a coisa vai andar pro lado em que o dinheiro estiver. Se quer fazer algo pra mudar realmente, comece a repensar e atacar esses bancos, tentar escapar da lógica de consumo, tentar perceber que tipo de mensagem a mídia quer passar e que tipo de sociedade e pessoas ela quer construir. Votar nulo ou não votar é apenas o pequeno e importante primeiro passo. Não há economia que não seja baseada em um interesse, mas talvez seja possível interesses não baseados estritamente em economia, algo que complicaria bastante isso que se chama de política. Do mesmo modo, é impossível pensar em Estado sem governança, mas é possível pensar em governança sem Estado. Ora, o Estado não tem como ser Estado sem a ideia de centralidade, de homogeneidade e de verdade. Não há Estado sem que haja um correlativo povo, na forma de um agregado de pessoas generalizadas sob este signo de povo. Por outro lado, há a possibilidade de se conceber uma governança autônoma, em federações, fraternidades, cooperativas e agremiações que construam seus próprios modos de viver, de acordo com suas diferenças e não mais com a abstrata equiparação genérica. 

3º) motivo está muito ligado aos dois anteriores. O voto nulo enquanto ato político de negação. Se eu votar em alguém, aceitar nem que seja essa faceta eleitoreira do funcionamento estatal, estou dizendo sim para toda sua lógica, pois é também sobre essa parcela que se sustenta a sua estrutura. Estarei dizendo sim aos problemas sociais criados e perpetuados pelo Estado, dizendo sim a desigualdade social e ao privilégio da classe dominante que é legitimada ou legalizada por esse Estado. Estou dizendo sim a guerra e ao sangue que acompanha o Estado "democrático" ou não, desde sua fundação (quem duvida disso, consulte a História e olhe quem cometeu os maiores crimes contra a humanidade).
Eu voto nulo pois digo sim a liberdade e a responsabilidade de me auto-gerir. Acredito na capacidade humana de se reinventar e não nessas fábulas terríveis que alguns perversos contam sobre nós e sobre nossa "natureza exclusivamente assassina". 
Claro, não quer dizer que acreditamos que a máquina estatal vai emperrar porque votamos nulo. Assim como adianta muito pouco deixar de comer carne individualmente e não beber coca-cola (sem atacar coletivamente a produção industrial de matança animal e de refrigerante), pouco resolve votar nulo individualmente. Mas, a questão aqui é a de ter um mínimo de possibilidade de expressão de si, um mínimo de honestidade para consigo. O voto nulo não salva nada, mas minimamente me faz ser honesto com meus anseios e impasses.

Então surge a pergunta: Mas como você explica a Suécia e o seu bem sucedido (?) Welfare State??? Não se pode explicar realidades tão diferente usando o mesmo esquema, mas vale pesquisar mais. Veremos que não é o PRIMORDIALMENTE o Estado que faz as coisas "fluírem" lá, mas antes de tudo a mentalidade das pessoas e a educação de altíssimo nível. E o mais importante, Welfare State não é o paraíso. Produz outras formas de repressão muito mais sofisticadas.
No entanto, possivelmente eles sentiriam bem menos que qualquer outro país se o tal Estado sumisse de vez, se reorganizariam bem mais facilmente. Vale novamente recorrer a História e relembrar sobre a realidade das metrópoles européias, colônias de exploração e colônias de povoamento. O mundo é interligado: se o Estado ou proto-estados dos países ricos não fizeram mal pra eles próprios, podem ter certeza que fizeram para outros povos. 


Não estamos aqui protestando, lutando pelo voto facultativo ou candidatos bonzinhos nem nada disso, não esperamos nada do Estado a não ser a barbárie, o roubo e a violência policialesca. Não achamos que exista candidato bonzinho, pois quem candidata é naturalmente ou profundamente desinformado ou profundamente prepotente, egoísta e/ou perverso. Acima de tudo, quem se candidata é já corrupto, porque a corrupção primeira não é o desvio de dinheiro público, mas é o ato de se fazer representar (se deixar representar ou pretender representar o outro). Em termos nietzsheanos, a corrupção primeira é o prescindir do poder de agir que se tem, a separação da força daquilo que ela pode, a divisão entre força e realidade, entre potência e ato. Aí é que nos lascamos, porque, neste caso, os primeiros corruptos somos nós, quando abrimos mão de nossa força de agir. Não existe candidato menos pior. O menos pior é não votar. Não existe candidato inocente. Só nós podemos nos inocentar, caso exerçamos o caráter político de nossa existência. E, no contexto de um aparelho de Estado, exercitar o poder de agir politicamente implica em duas alternativas, pelo menos. Dentro do modo de produção de governança, não votar. E dentro do modo de produção de poder, lutar. Combater, agregar um (contra-)poder que seja potência de agir entre seres que compartilham a diferença, não a igualdade fictícia. 

Estaríamos sendo anarquistas? Em certo sentido, é claro que sim. Só que não nos definimos pela ausência de governo, mas pela liberdade de agir e lutar, pela potência de constituir uma governança que não seja extrínseca a nosso corpo, a nossas relações, a nossos grupelhos, a nossas singularidades.

A eleição não é certamente um momento político, mas é a tentativa despolitização compulsória em massa. Um ato político não se realiza na eleição.

2 comentários:

Anônimo disse...

Brilhante análise do voto nulo.

Fernando Yonezawa disse...

Obrigado, Anônimo! Seja sempre bem vindo!