Devir é um conceito da Filosofia e denomina transformação intensa da vida, a partir dos encontros que construímos. Inspirados por este conceito, oferecemos nosso espaço e nosso trabalho para que possamos produzir transformações, as quais sejam por uma vida alegre, criativa e engajada social, política, ecológica e eticamente.

sábado, 9 de junho de 2012

Quem queremos a revolução

Pedimos desculpas pelas últimas semanas sem postagens... Mas nossa criatividade também não é feita para trabalhar a toque de caixa. Precisávamos de um breve descanso de algumas semanas para podermos seguir criando aqui. Bem, retomamos postando uma discussão sadia que tive com nosso querido Pedro Costa, quando do início da greve lá na UFTM, onde trabalho. Decidimos postar essa conversa porque acheamos interessante para discutirmos questões que passam nos meandros de uma greve e de uma luta engajada.


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    Fernando, como estão as coisas? Dei uma sumida, estava de férias do serviço... e ando meio pensativo... mais introspectivo... até mesmo individualista pensando no futuro. Futuro... bom o velho fantasma e mais poderoso que as assombrações do passado...






    Contudo, essas manifestações que tem ocorrido na UFTM me chamam a atenção. Fico feliz com isso, apesar de eu estar em uma posição absurdamente contemplativa, passiva e inerte frente a qualquer movimento de mudança (o que não deixa de ser uma posicionamento político, aprendendo e extrapolando a sua postagem no blog). Ao mesmo tempo, fico amedrontado e acuado. Não temeroso com a mão opressora de uma organização estatal que endurecerá em reprimenda e virá solapar qualquer possível mudança e blá blá blá. Sei que isso não acontecerá (felizes daqueles que viveram a época que isso acontecia, pois o inimigo era visível). A ditadura - pelo menos aquela assumida e explícita - acabou. Temo uma outra coisa! Temo a voz daqueles que gritam por revolução. Temo por aquilo que motiva esse grito. Não confio em minha geração, não acredito que suas causas são sinceras e nem acredito que eles sabem o que estão pedindo. Digo isso por fazer parte de tal geração. Sou nativo desse tempo, não conheci outro. Muitos de seus alunos na UFTM são mais velhos do que eu. Temo que a luta é uma luta contra a própria sombra, uma luta contra próprio reflexo e que no fim será obtido apenas estilhaços do espelho espalhado pelo chão.É válido lutar por uma Educação pública de qualidade. Mas, quem luta por essa educação são exatamente aqueles que já tiveram e já tem a melhor educação que o Brasil pode oferecer.Reconheço também que a luta é pela maior possibilidade de acesso e continuidade na faculdade por alunos de "baixa renda". Mas quem luta ali está no fim das contas lutando por suas próprias causas e se não está, o beneficiado será no fim das contas ele próprio, caso isso a mudança ocorra.










    Isso porque, na conjuntura e na origem do problema, tudo continuará do mesmo jeito. A luta passa a ser ideologizada.








    Você sabe que a questão de classes sociais é um ponto crucial pra mim e não sou nenhum marxista religioso e etc... Isso pesa ainda mais quando para ouvir, ouço, interrompo a escuta e vou olhar para quem está falando.








    Me lembro de Nietzsche do Zaratustra e o seu amor ao próximo. Tudo o que esses jovens pedem, na maioria deles, aparentemente é algo que remete ao amor ao distante (um ato genuíno e difícil de solidariedade). Mas qndo olhamos para as suas vidas, suas demandas e suas ações tenho a impressão que não se trata de um amor ao distante, nem amor ao próximo, mas sim um amor ao muito próximo e a sua vida burguesa. Pq os aparentemente próximos, separados por alguns bairros de distancia, aqueles alojados mais na beira, estão na verdade muito longe. Lendo seu post pensei. Pq não fomos então para a porta da expozebu, com cartazes e apitos, foices e coquetéis Molotov???? Gritamos revoltados pela desigualdade social, o império monopolista e Colocamos fogo nos estandes matamos o boi mais caro e seus donos pegamos alguns para fazer um grande churras lá dentro convidando tudo o que é de mais excluído para ceiar conosco???













    Tudo bem, exageros a parte. Talvez levar essa galera da UFTM pra gritar na expozebu, gritar no shopping, gritar em frente uma igreja. É um ato inócuo, não vai mudar nada eu sei, mas pelo menos eu sentiria que nos fundamentos algo foi de fato estremecido. Os alicerces da normatividade normalidade normofóbica seriam por alguns minutos abalados. Estaríamos de fato operando um movimento esquizo.












    A velha história da captura desses movimentos me perturbam... tenho sempre a impressão que essas manifestações são destacadas de um contexto social mais abrangentetenho a impressão q o ato dos professores é mais genuíno, até por ser uma questão trabalhista e a base do problema.Resumindo: estou desesperançoso, triste e com a potência do corpo exaurida. Estou com uma absoluta preguiça de me mover...tenho a impressão que esses jovens querem uma luta, um inimigo. E estão lutando contra um peão, enquanto o Rei ri deles, os filma e paga a conta...
















    Não retiro nem uma palavra do que disseste! Contudo, sua ou nossa geração é também uma que não suporta mais divisões classistas... digo, alguns pelo menos sentem, ainda que não muito conscientemente, o mal estar das grandes segmentaridades sociais. O ato dos estudantes, ao contrário do que o Jornal da Manhã noticiou, foi apenas em parte para nos pressionar a entrarmos em greve. Foi muito mais para nos prestar apoio e incluir seus itens de pauta. Vejo que, como todo movimento, em seu nascedouro já está cheio de erros. Porém, algo que gerações anteriores não vislumbraram a não ser em momentos muito fugazes (maio de 68 por exemplo) foi a compreensão de que os problemas vividos extrapolam as classes. Muitos estudantes que participaram do ato não são de classes médias tão abastadas quanto se imagina. Outros, como eu mesmo, estão num processo de rompimento com sua criação burguesa, seja ela ligada, ou não, à condição financeira (já que há muitos proletários com modulação desejante burguesíssima). Assim, um primeiro fator que me parece revolucionário neste movimento é que partiu dos estudantes e técnicos, muito mais do que dos professores, uma iniciativa de se transversalisar a luta, ignorando as divisões institucionais. Por exemplo, quando se movem para unirem-se e lutam para que na pauta da possível greve o hospital não seja privatizado, ou quando pedem 10% do PIB investido em Educação. Os itens de pauta dos estudantes são possíveis conquistas que trazem poucas vantagens diretas para a maioria dos atuais alunos da UFTM, pois, como vc acusa, estes já têm condições reais de driblar os baixos investimentos estatais em educação pública de qualidade. Por outro lado, as causas docentes não são questões centralmente trabalhistas - neste ponto discordo de vc -, são questões salariais e de carreira: e seria muito mais genuíno como luta trabalhista se, por exemplo, exigisse mudanças nos parâmetros de produtividade colocadas pelas agências de fomento (dando mais valor a projetos de extensão voltados para a comunidade, do que para publicação de artigos).






    Há ainda um outro ponto: Uberaba tem vivido histórica e culturalmente sobre um agenciamento desejante extremamente submisso, acovardado, que chega a achar feio ou digno de zombaria a expressão do sentimento de indignidade. Neste sentido, este movimento é um pequenino início de um rompimento com a cultura mais sedimentada da cidade, que vc deve sentir, como cidadão dela, mais do que eu; cultura essa que se expressa no cansaço e derrotismo que vc confessa passar pelo seu corpo (mas que não é seu necessariamente). A partir deste aspecto, vejo, finalmente a universidade pública fazendo seu papel educativo e contribuindo com a comunidade local: está justamente educando os modos afetivos da cidade, inclusive porque muitos dos alunos que participam deste movimento são uberabenses e talvez não tivessem condições de cursar uma universidade pública se não morassem na cidade em que estudam. Enfim, todo este movimento, ainda que timidamente revolucionário, tem sim seus pontos de ruptura e criação de um novo agenciamento subjetivo, político, epistemológico, relacional, cultural etc. Claro que ele apresenta grandes riscos de captura, que vc enumerou muito bem e com as quais concordo absolutamente. Aliás, como vc disse nas entrelinhas, vivemos na era em que a habilidade de captura por parte do aparelho de Estado-capital está cada vez mais refinada, porque, entre outros motivos, o Estado-capital se molecularizou, se transformou em parte de nosso afeto, de nosso modo desejante. Entretanto, é justamente por haver estes riscos que estes movimentos se chamam lutas. Lutas não só por direitos, mas por afetos genuínos, sinceros (como vc disse), por maneiras de sentir que ultrapassem as classes e os problemas e ganhos narcísicos. Alguns funcionários na UFTM começavam a adoecer, assim como muitos professores estão esgotados. Havia um profundo mal estar entre os alunos, que não se sabia dizer o que era, mas que inegavelmente tem um pouco a ver com o clima de submissão, com os desconfortos causados pelos problemas que as pautas desta luta denunciam. Suspeito que a cidade, inclusive a população mais pobre e relegada à ignorância e à cultura de massas pelos seus reis chifrudos, esteja ganhando com esse movimento, esteja tendo contato com um modo de sentir e agir no espaço público, que nunca ou há muito tempo não vivencia. São movimentos que, se vitoriosos, permitirão, sim, que a divisão econômica entre as classes - a qual, como vc destaca, recrudesce a divisão de acesso à educação superior pública - seja minimamente atenuada, ainda que não totalmente, ainda que a médio e longo prazo. Ora, é claro que, se houver bolsas, moradia e restaurante universitário - em nome dos quais os estudantes têm lutado- haverá a possibilidade de jovens de classes mais baixas usufruírem da UFTM. E devemos lembrar ainda que esta é apenas uma das ações necessárias. Se também os alunos e trabalhadores do ensino fundamental e médio não começarem a exigir mudanças radicais, estará operando muito pouco a luta no nível da educação superior. Concordo em derrubar a corcova dos zebuzeiros, mas dentro da UFTM estamos também na luta por derrubar o poder dos aventais brancos, que também são perigosíssimos para a construção de um pensamento transversalista, politica e socialmente engajado. A nossa associação de professore por exemplo, está ainda na mão de médicos, que mal podem ir a Brasília negociar com o governo, porque, além de professores, ganham como médicos do hospital e precisam fazer plantões. É uma associação que usava o dinheiro das contribuições apenas para ir tomar cerveja nos bares mais caros da cidade, sob o acordo de não falarem dos problemas de trabalho, como contou muito alienadamente, nossa colega professora da Psicologia, docente da Psico Comportamental. Embora uma coisa não exclua a outra, não podemos fazer tudo. Quando estiveres descansado e mais cheio de novo vigor para lutar, podemos elaborar juntos uma intervenção na exposição. Apenas é melhor, como estratégia, não matarmos o touro mais caro... há muita gente hoje que protestaria contra isso, já que o bicho não tem que pagar pelo seu dono. Talvez possamos apenas castrá-lo, pois o que mais vale nele é... a porra! Afinal, estamos na era da capitalização das molecularidade. Enfim, estamos apenas no começo de um movimento que precisa crescer e se nutrir não só na UFTM, mas na cidade. O alimento virá dos cidadãos da cidade que se contaminarem com os afetos nobres da luta. Grande abraço! Muito aprazido por esta discussão e pelo seu reaparecimento!









    Fernando, sempre bom falar com vc, expressar meu descontentamento e desconfiança, pois sei que sempre encontro promove-se acontecimentos... e para mim, foi gratificante...











    e devo concordar com vc... o ponto da superação classista é real e o desejo tem muito mais a ver com o modo com o que se deseja dos necessariamente com o que, que acaba sendo secundário e consequente à modulação desejante...








    mas, até que ponto eles estão de fato abrindo mão ou superando a modulação burguesa? Quando vc olha para os olhos deles, vc consegue perceber o quão dispostos eles estão a superar? Ou seria a revolução apenas mais um evento fashion , um produto de consumo e entretenimento, enquanto suas contas se mantem pagas em dia?
















    Pedrão, desculpe a imensa demora em responder... eu me envolvi com a greve e muitas viagens pelo caminho e não tive disposição física para parar e escrever-te... Bom, o que posso dizer é que vejo, sim, nos alunos um real desejo de transformação, de ver coisas acontecendo de um modo diferente e creio que, para enxergar isso, não podemos nos limitar a pensar em classes sociais. Reitero, a questão toda, para mim, está no agenciamento desejante (que não é só subjetivo, individual, interno ao sujeito). Vejo os alunos e alguns professore lutando para derrubar hierarquias improdutivas e adoecidas, vejo alunos intervindo de modo a disseminar a discussão da greve para futuros vestibulandos e cidadãos uberabenses, vejo-os promovendo eventos culturais para reunir pessoas, partilhar afetos, poesia, música. Isso tudo é revolucionário, porque, inclusive, a revolução é inseparável de um contexto dominante, que, no caso, é o de uma cidade cuja população está fadada à educação de má qualidade e à contaminação quase patológica pela cultura de massas. É revolucionário também porque a própria universidade sofre com esses males... e talvez seja justamente por estarem ocupando um espaço público que estão podendo questionar a realidade que vivem... talvez não se dessem conta dos problemas que se vive numa instituição estatal e nem estivessem podendo compreender o que é o espaço público. Mas isso tudo só não é revolução se tivermos uma concepção muito circundada de revolução, como sendo rompimento de uma classe. Há inúmeras desconstruções que vejo acontecer nos alunos, especialmente naqueles que, embora não muito endinheirados, viviam sob uma modulação de vida aburguesada, respaldada em valores como família, felicidade, disciplina etc. Então, acho sim que muitos estão dispostos a superar inúmeras institucionalizações valorativas, afetivas, existenciais, políticas, éticas, que transbordam em muito a questão de classes.








    Por outro lado, posso dizer, com certa tristeza e pessimismo que não vejo revolução em lugar algum... não quanto aos alunos especificamente, mas quanto à vida, ao mundo. Quero dizer é que deveríamos nos preocupar em sermos nós mesmos revolucionários em








    nosso cotidiano mais ordinário. A greve não tem quase nada de revolucionária, posto que já se tornou uma instituição, que inclusive é respaldada em lei. Quer dizer, se por acaso não há espírito revolucionário entre estes estudantes, é muito mais porque a própria greve é um instrumento reabsorvido pelo aparelho estatal e porque nós todos não soubemos construir nenhum outro modo de luta. Ora, vejamos, que estou falando que a greve é um instrumento, não o acontecimento de fato. O acontecimento revolucionário é sempre maior que o instrumento de que se utiliza. E vejo muita coisa sendo remexida com esta greve, especialmente em níveis moleculares, muitas vezes pouco perceptíveis quando olhamos pelos parâmetros costumeiros: vejo os professores conservadores se desesperarem em manter os modos de funcionamento enrijecidos, vejo os próprios grevistas adotarem posturas reacionárias e micro-tirânicas, vejo professores sendo desafiados a sustentarem sua palavra de que vão lutar junto dos alunos... inúmeras transformações importantes, que não constam nas pautas, mas são muito significativas para o cotidiano institucional e para as relações vitais.






    Mas, como eu dizia, não vejo tanta revolução quanto desejo. Deveríamos nos preocupar em fazer mais pequenas revoluções, não baseados na imagem de revolução, mas impulsionados pela força e potência de devir. Sinto que vivemos uma era de cansaço e letargia, como diria Nietzsche. É preciso aprender a ser revolucionário no mais ínfimo desejo, no cotidiano mais banal, não apenas num momento em que se espera a revolução, como a greve. Não vejo sentido em cobrarmos que estes estudantes sejam revolucionários mais do que nós próprios, todos juntos. Sabemos que, se eles tiveram alguma situação de classe privilegiada para serem capazes de acessar a universidade pública, isso não é fruto da vida deles, mas apenas repetição da velha história brasileira. E é essa história que precisa ser revolucionada, não os sujeitos construídos por ela. Não acho que eles precisam ser cobrados mais do que nós. Todos nós precisamos nos cobrar, porque todos nós inclui eles e nós também somos eles, somos todos nós. Enfim, desejo mais revolução, assim como você, mas desejo que todos revolucionemos...





    E deveríamos, sim, ter feito uma intervenção na Expo-Zebu, mas junto com gente da cidade, que também se responsabilizasse pela miséria política, cultural e educacional que vive. Essa não é só uma responsabilidade destes estudantes...









    Por Pedro Costa e Fernando Yonezawa