Devir é um conceito da Filosofia e denomina transformação intensa da vida, a partir dos encontros que construímos. Inspirados por este conceito, oferecemos nosso espaço e nosso trabalho para que possamos produzir transformações, as quais sejam por uma vida alegre, criativa e engajada social, política, ecológica e eticamente.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Arte contra o princípio de realidade - De novo sobre o novo da Arte


Uma questão que se passa sempre comigo é “para que serve a arte”... E sempre gosto de pensar que a arte não serve. Mas ela realiza, exerce uma força no tecido do real. Talvez, se possa chamar a isso, uma função da arte. E talvez seja mais um funcionamento do que uma função, um cargo.

A função da arte é colocar em nós aquilo que não é de nós, ou aquilo que não viria por outro meio senão por uma ruptura, por uma espécie de agressão impiedosa, uma invasão. Portanto, ela não depende de cargo, mas de cargas de energia, de tensões e forças moventes que ela coloca em jogo e, especialmente, em risco.

Assim, um dos sentidos da arte é o despeito, o qual está além, ou antes, do desrespeito. O respeito e seu oposto são uma questão de classe, de (pré)suposta aristocracia, de estrato social. Mas o despeito é aquilo que fende a realidade, que dá de ombros para os estratos sociais, os bons sentidos, os bons sensos e os sensos comunicados (comuns). É como se a arte olhasse o mundo sempre de costas... o despeito que a arte exerce são formas de distinção, posições para a diferença, não meios de discriminação, discriminação entre poderes.

Se há algo que a arte pode é fazer os poderes não importarem tanto. O que a arte pode é simplificar as linhas de limitação super-investidas e inserir a categoria do insuspeito da realidade, enquanto algo do qual não se apodera senão fazendo desabar um poder. Por isso, se poderia dizer também que arte se coloca contra e para além disso que as psicologias mais caretas e moralistas chamam de princípio de realidade, que considera uma realidade já formada, acabada, diante da qual, nada há o que fazer, senão aceitá-la e adaptar a vida a ela. Não, a arte não liga para a realidade, a não ser para fabricar mais uma realidade dentro dela. A arte copula e engravida o tecido do real, faz jorrar grãos afectivos devirulentos (devir + virulentos) na história, no social, em nossa sensibilidade.

Mas, por isso mesmo, a questão toda é: afinal, que lugar estamos dando para a arte em nossas vidas??
Daqui de onde vejo, percebo é que a arte tem sido, na maioria dos casos, objeto apenas de consumo ou admiração (inveja eufemizada). O discurso do talento, um excesso de força reativa, de preguiça afetiva e inércia permitem, ou melhor, promovem modos de existência aplainados, tomados de desejo por labor e sonhos de agência de turismo.

Evidentemente, não se pode esperar por políticas públicas de incentivo ou fomento à arte. Elas sempre estarão coligadas justamente com os poderes nos quais a arte insere suas flechas acupunturais. Lutar por estas políticas é vital, mas esperar por elas é já deixar que elas nos derrotem. Especialmente, é vital pressionar o aparelho de Estado a partir de intervenções artísticas, mas é imprescindível que as expressões artísticas não se limitem a agenciamentos estatais.

Por isso mesmo, por outro lado, se pode fomentar, até no cotidiano mais sedimentado, políticas existenciais de germinação da arte. Se um desenho que se faz enquanto se fala ao telefone puder crescer, ganhar uma folha inteira, se um cantarolar puder extrapolar o banheiro e a cozinha, ninguém sabe o que seria. Mas seria tudo, menos Ser.

Claro, digo isso porque sou muito a favor da arte amadora e da arte naïf. Pois o que é o amador senão simplesmente aquele que ama? E amar implica em cuidar cotidianamente, fazer crescer. Uma questão de vida.

E o grande niilismo neste problema todo do discurso do talento está no fato de que ele não faz desabar os poderes, apenas abre mão das potências. Toda vez que uma existência coloca para si um modelo pré-fabricado de vida, toda vez que se troca um pouco de descanso, de pintura, poesia e dança por trabalho e vontade de juntar dinheiro para comprar carro e viajar para o exterior, aí se está também abrindo mão de uma potência em favor de poderes e valores estabelecidos, dominantes, para não dizer pequeno-burgueses, demasiado pequeno-burgueses. Ora, o niilismo é isso. O abandono das potências de criação, o crescimento das forças de (boa)adaptação e violação, o estabelecimento irrestrito da realidade como um princípio.

Se é para violentar, que seja uma violência estético-existencial, que seja a dobra de uma vida, de uma cor, de uma pequena explosão de música, de sexualidade. Mas que a violência não seja esta dos corpos dóceis, que sonham intensamente viver, mas temem morrer, justamente porque já não vivem.

Como iniciei este texto: a vida da arte exige que se saiba morrer, porque antes já se vive abundantemente, desmesuradamente. Morrer é uma potência absoluta, que, como Nietzsche diz, só os mais nobres corpos são capazes de realizar. Os de corpo débil e intestino preguiçoso não fazem mais do que sonhar a boçalidade das imagens de primeiro mundo.

O estrangeiro não é tão belo e forte quanto é alegre e encorpada a cidade exterior que a arte nos traz mesmo sem sairmos de casa! São distantes riquezas... e falo aqui justamente de dois tipos de riqueza distintas.