Devir é um conceito da Filosofia e denomina transformação intensa da vida, a partir dos encontros que construímos. Inspirados por este conceito, oferecemos nosso espaço e nosso trabalho para que possamos produzir transformações, as quais sejam por uma vida alegre, criativa e engajada social, política, ecológica e eticamente.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Universidade Pública??!! Manifestação dos alunos desautorizada

A Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), em que trabalho, embora seja nova (tem menos de cinco anos e não tem ainda nenhuma turma de Psicologia formada), já apresenta problemas sérios. Os professores estão sobrecarregados de aulas porque faltam professores efetivos (eu, por exemplo sou apenas temporário), não há assistência estudantil (restaurante universitário, moradia etc.), falta espaço físico para aulas e laboratórios.

Ante-ontem, dia 22/11 muitos alunos do curso de Psicologia haviam colado inúmeros cartazes de protesto, reivindicando a contratação de professores, criticando a ausência de R.U. etc. (a imagem acima foi feita por duas de minhas alunas e postada no Facebook)

A minha grande surpresa foi ver que já no dia seguinte, ontem, dia 23, os cartazes haviam sido retirados!

Fui me informar e soube que eles haviam sido retirados pela zeladoria do prédio porque precisavam de autorização para serem colados!

De início pensei que tivessem sido as faxineiras do prédio, que são terceirizadas. Uma delas, aliás, disse que achou ridículo os alunos fazerem aquilo. Perguntei por que. Ela disse que era besteira o que eles diziam. Bem, claro que não me calei e a informei de todos os problemas que havia e eram fatos. Ela se surpreendeu ao saber que o que os alunos exigiam era legítimo.

Pois bem, gostaria de deixar expressos meu apoio aos alunos e à sua manifestação.

Também, como professor e, acima de tudo, como educador desta universidade, gostaria de deixar uma palavra educativa, com o perdão da imodéstia que isso possa soar ter. Esta palavra vai especialmente para os gestores desta universidade e para os responsáveis pela "zeladoria" do prédio.

Saibam que esta é uma universidade pública, não uma instituição privada. Não é uma empresa. A manifestação e a expressão de qualquer dos grupos e indivíduos que dela usufruem deve ser livre! Estamos passando por problemas sérios! Neste sentido, o público a quem os serviços desta instituição se destinam deve ter toda a liberdade de expressar-se e manifestar-se. A mediação ou interferência de qualquer instância se configura como violação da possibilidade de exercício de cidadania e resistência. Sendo uma universidade pública, seu território pertence ao aparelho estatal, mas deve ser controlado prioritariamente pelos seus usuários. Exigir autorização para a manifestação de consciência da realidade que se vive é uma refinada e violadora maneira de burocratizar o espaço público e a intervenção ativa dos estudantes. Trata-se, por isso, de uma forma de privatização arbitrária daquilo que é de uso público. Além disso, trata-se de uma violação da democracia, a qual, só pode ser de fato democracia, quando é direta, não representativa e quando permite embate e conflito. Podemos dizer, ainda, que viola-se, com um ato aparentemente tão banal, aquilo que é parte essencial da formação destes estudantes e que justamente os diferenciaria de sujeitos constituídos numa instituição privada: a crítica à realidade, o exercício da cidadania, a apropriação ativa das questões e problemas vividos e, especialmente, a politização, se concebemos que a política seja o exercício de determinar e contra-determinar as diferenças de força e poder existentes na realidade.

Se quisermos ser legalistas, para que pareçam mais palatáveis estas minhas palavras (embora o legalismo irrestrito seja sintoma de grave e boçal servidão), podemos dizer que este tipo de burocratização fere direitos constituídos neste país.

Estes dias, depois de trocar algumas palavras com um de meus mais sensíveis mestres, o Prof. Dr. Gregório Baremblitt, pude ter clareza daquilo que antes se apresentava como um impasse, quando postei o tópico falando sobre a intervenção da polícia na USP. Naquele tópico eu dizia, quase que apenas intuitivamente: "prestemos atenção, o problema da segurança na USP é só um sintoma, não é a grande questão. Há algo mais, algo além." Porém, não sabia dizer bem o que era. O prof. Gregório comentou a postagem: "seria interessante se os alunos deviessem cidadãos e criassem uma comissão própria de segurança interna".

Pois bem, a questão mais além a que me referia era essa! Nas universidades públicas, os alunos precisam ainda devir-cidadãos, precisam pegar nas mãos o espaço público, tomá-lo dos aparelhos de vigilância e violação, contra-efetuar um poder que quer se adonar daquilo que é propriedade de todos e, neste sentido, privatizar subjetivamente. Os alunos não devem depender de estância estatal alguma para exercerem aquilo que Hannah Arendt chama de ação entre os homens, ou seja, exercitar a liberdade, a ação no espaço público.

Notemos bem, a liberdade é um exercício, uma prática feita privilegiadamente nos espaços públicos; ela não vem feita, ela não depende apenas de des-repressão, de indeterminação. Muito pelo contrário, a liberdade é o exercício ativo da determinação, uma determinação intrínseca aos grupos; uma determinação por parte dos grupos, das forças que os constituirão e nutrirão, das suas potências, das ações concretas. Na USP é isso que está em questão, para além do problema da segurança e da presença da polícia no campus. Na UFTM, é também isso que está em questão!

Essa é a problemática transversal que perpassa e alinhava o problema da polícia na USP e este acontecimento aparentemente mais brando e insignificante que houve na UFTM com alunos para quem dou aulas. Eu reitero: APARENTEMENTE mais brando! Porque, afinal, trata-se da violação mais cotidiana, da estupidez institucionalizada, da privatização e embotamento do espaço público, da corrupção dos corpos dos estudantes, naquilo que se refere às suas forças de ação, à sua educação.

Eu me pergunto, esta universidade é pública mesmo, ou é um shopping de conhecimento técnicista cujos donos são uma meia dúzia de coronéis de estetoscópio???!!!

O que vejo é que se precisa de autorização para ser politizado e exercitar a cidadania, mas não se precisa de autorização para privar os alunos de bons serviços públicos e de professores que possam se dedicar a oferecer, além de aulas técnicas, projetos de pesquisa, serviços de extensão à comunidade, formas de saber questionadores, engajados e comprometidos com os processos sociais.

Bem, espero sinceramente que os estudantes da UFTM não aceitem este tipo de violação refinada, mas concreta e produtora de adestramento. Eles sabem, têm meu apoio e minha ação concreta para lutar com isso.

Espero ainda mais ansiosamente que este tipo de prática não se repita por parte desta universidade, já que ela se pretende pública e capaz de oferecer uma formação integral e crítica aos alunos.

8 comentários:

Pedro H.L. Costa disse...

Caro Fernando, endosso suas palavras. O que tem acontecido nas Universidades é algo que requer nossa atenção. Não é algo totalmente inédito, pois essas instituições sempre estiveram no âmago desses conflitos políticos e nesse embate de forças, principalmente no terreno teórico-ideológico. No entanto, é sim algo novo enquanto um processo-fluxo, em um momento histórico-social singular.
Chamo especial atenção para um ponto que esbarra no cômico e revela o cinismo (em um sentido demagógico, longe do cinismo de Diógenes) dessas artimanhas institucionais.
“Fui me informar e soube que eles haviam sido retirados pela zeladoria do prédio porque precisavam de autorização para serem colados!” Ora, isso é hilário!!! Quer dizer que para se manifestar contrariamente à forma pela qual o ‘sistema’ funciona ou (em um nível mais profundo) se constitui, precisamos do aval e do apoio desse próprio sistema??? Isso já não seria uma forma sofisticada da própria instituição reprimir as manifestações? O mesmo ocorre na USP, qualquer outra universidade e no espaço público como um todo, onde as manifestações devem ser avisadas e PROTOCOLADAS juntamente aos órgãos estatais!!! Isso é um contra-senso absurdo, mas algo relativamente previsível e coerente com os equipamentos ideológicos e repressivos de estado...
Acho que nesse momento, além de fazer a crítica de como a instituição se organiza e tenta exercer o poder, nos cabe pensarmos como nós exerceremos uma contra-força para além do aval, apoio e autorização do estado!!! Não podemos esperar nada diferente dele, pois ele se processa enquanto repetição anti-produtiva. Se a vontade do novo está conosco é de nós que deverá partir a ‘auto-rização’ para ocuparmos o espaço público e fomentarmos a diferença. Acredito também em uma solução bélico-estratégica-amorosa! A sua intervenção com a faxineira merece aplausos! Isso sim é fazer política!

Fernando Yonezawa disse...

Caríssimo Pedro!

Em primeiro lugar, agradeço cordialmente pelo comentário aqui!
E além de grato, fico muito honrado de ter palavras tão precisas, tão contundentes e fortes como resposta parceira à nossa intervenção.
Vc foi muito preciso em dizer: manifestações protocoladas! Lembro que falamos um pouco disso na oficina de ética da Univ. Popular. De fato, é tragicamente hilário, pois é como se disséssemos à instituição: "o que está acontecendo aqui é indigno, é preciso te dar um tapa na cara, vc deixa eu te dar um tapa?"
Contudo, tua precisão maior, também no sentido de indicar uma necessidade, uma coisa de que precisamos, foi nos alertar de que precisamos é pensar mais em que fazer, do que em apenas ressentir o que nos ocorre.
Bom, estou já me articulando com os alunos, para realizar um abaixo assinado contra essas autorizações e montar uma comissão autogestiva que fique responsável por fazer esse trabalho de zeladoria e cuidar daquilo que deve ou não ser colocado no prédio.
Se tua nobreza e profundidade permite chamar isso tudo de solução bélico-estratégica-amorosa, é algo que me honra ainda mais e me fortalece para fazer de minha passagem pela UFTM algo mais do que um simples trabalho que faço para me sustentar, ou para dar aulas conteudistas para futuros profissionais.
É por isso que concordo com Bauman quando ele fala do mau-estar contemporâneo, ligado uma compulsoriedade das mudanças, ou melhor, de uma compulsoriedade da fragilização das relações. E discordo daqueles que o criticam e dizem que a contemporaneidade estaria mais aberta a devires, a conexões nômades, por causa dessa liquefação das relações. Veja, tudo muda de um dia para outro, mas as mudanças a que nossos corpos são impelidos são mudanças reativo-reacionárias, rebaixam as potências vitais! Vemo-nos diante de um muro de vidro, que nos permite olhar o fora, mas quebra nossos narizes quando tentamos sair.
Bem, creio que poderemos construir juntos outras trincheiras afetivo-guerrilheiras.
Cordial abraço!

Anônimo disse...

Olá professor!
Sou estudante da Universidade e sou do curso de medicina. Eu concordei com quase a totalidade de suas palavras sim. O que discordei foi a maneira de realização da crítica em relação à administração da universidade, isto é, aos chamados coronéis de estetoscópio. Concordo plenamente em que há a necessidade de se contratar mais professores, de uma forma geral, não só nos cursos da área de saúde, mas nas demais áreas também. Caso a universidade estivesse voltada em direção única para o curso de medicina, como o senhor próprio citou, o hospital teria se expandido, ao invés de se ter criado o ICTE. Não digo que sou contra ao que você disse por fazer medicina, mas não acho justo rotular a maneira de se administrar a universidade pelo curso realizado pelo reitor. O senhor não concorda?
Por fim, acho que sua opinião em relação a manifestação dos alunos é muito, não só válida, mas uma maneira de se fazer uma reflexão sobre o que nos cerca. Não são grandiosidades que devemos, estudantes, nos ater. O direito de se expressar é um direito de qualquer cidadão, especialmente em relação ao descontentamento com o serviço prestado pela atual gestão.
E parabéns pelo blog!

Fernando Yonezawa disse...

Olá Anônimo! Seja bem vindo!
Agradeço por ter comentado. Gosto muito quando há também diferenças e discordâncias.
Bem, não me referi ao reitor, mas ao centralismo que o poder médico tem historicamente em todos os campos sociais. Há um inchaço mórbido do poder que a medicina exerce sobre os corpos. Também não digo isso apenas a partir da percepção empírica de algumas sutilezas que já estão naturalizadas em nosso cotidiano, mas também fundamentado por obras de autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jurandir Freire Costa, Jacques Donzelot, etc. Veja por exemplo, a estética desta universidade, que mais parece um prédio de um hospital privado, todo pintado de branco, todo ascéptico! Isso é uma das mais claras evidências de um domínio irrestrito e da penetração onipresente das éticas, políticas e estéticas médicas. Esta é já uma forma de privatização e dominação política. A expansão para áreas tecnicistas não aponta para muita diferença em relação à hegemonia médica, já que fazem parte de um mesmo agenciamento social, de domínio das ciências forjadas durante os séculos XVIII e XIX e que muito interessa expandir pois geram inúmeros acordos financeiramente lucrativos para o setor privado. Compreenda, não é o reitor, é um agenciamento social inteiro. Evidentemente, a vocês não interessa questionar o poder que têm, não irão reconhecer que invadem todos os meandros do espaço social e dos corpos, inclusive na universidade. Não se trata de rotular uma administração, mas de questionar os pequenos e reais conceitos existentes nela e que derivam, sim, de uma completa inconsistência daquilo que se concebe ser o espaço público, ou pior, de uma conivente tendência em alienar este espaço. A situação se agrava pelo fato de se possuir um poder-saber que é socialmente referendado, mas muito pouco questionado em termos ético-políticos. Esses dois fatores, pelo menos, fazem qualquer administração se tornar despolitizada e privatizadora em diversos níveis e sentidos, que incluem, por exemplo, a necessidade de autorização para manifestações. Por isso, chamei isso de coronelismo de estetoscópio. Há, sem dúvida, ransos ou decisões deliberadas de se adotar maneiras privadas de se administrar, reafirmadas por um poder socialmente hegemônico. Há privatização só de haver este domínio; práticas de privatização que acontecem, em primeiro nível, no âmbito subjetivo, mas a partir de estratégias e práticas concretas. Há privatização estética, privatização ideológica, epistemológica, cognitiva, arquitetônica, etc. Tudo isso constitui, no final, uma forma de dominação política, centralista e classista.
Bem, estou sempre aberto a discutir, se vc quiser também.
Abraços!

Anônimo disse...

Achei muito interessante esta discussão e gostaria de fazer um breve comentário. Infelizmente a UFTM é uma das poucas universidades publicas que só podem ser acessadas por alunos, sendo assim restritas a visitantes (contribuintes) que sustentam a instituição.

Fernando Yonezawa disse...

Olá! Anônimo!
Não entendi bem seu argumento, mas acho que vc tbm não entendeu nada do que eu disse... talvez eu mesmo não tenha sido claro... e talvez as coisas tampouco sejam claras nesta realidade.
Bem, vamos ver se consigo me fazer esclarecer. Existem conceitos, idéias, modos de agir, formas de ação, formas de pensamento, sentimentos que são típicas de uma lógica do privado. Existem poderes que não se limitam a poderes políticos da maneira que conhecemos.
Existe a invasão da lógica capitalista e das empresas privadas em todas as instituições deste país, sejam elas públicas ou particulares. Os aparelhos de análises, os kits de testagem que vocês das ciências da saúde usam, por exemplo, são compradas pelo governo federal, mas justamente de grandes empresas do ramo.
A lógica do privado é muito mais extensa, refinada e penetrante do que imaginamos. Não sejamos ingênuos, ou despolitizados, ou pior, despreparados enquanto cidadãos, de pensarmos que só porque uma instituição é estatal não está sendo determinada em muitos momentos pelo setor privado, inclusive, como eu disse, pelos modos de pensar, agir, administrar sustentados por pessoas dos cargos gestores (reitores, diretores, pró-reitores etc.) Não há nada de interessante nisso, nada de irônico, nada para chamar de interessante com ironia. O que há é fabricação de modos de agir e gerir absolutamente corrosivos para a vida, para a democracia, para as forças dos alunos agir sobre a realidade que vivem e os constituem.

Pedro H.L. Costa disse...

Caros Fernando e Anônimos.
Para endossar o que o Fernando disse sobre a disseminação da lógica do privado, cabe Citar Hardt e Negri, quando argumentam que tal lógica mercadológica e privatista é tão absoluta , invade de tal modo todas as dimensões da vida social de maneira tão incisiva que a sua articulação se dá tal qual um império. Nada escapa, ou melhor, tudo é tentado a ser apreendido pela realidade criada no capitalismo flexivelmente monstruoso! Outro ponto crucial que acredito que deve ser repensada é a sobreposição entre "público" e "estatal". Quando reconhecemos que "o Estado" não é "o público", mas é a própria propriedade privada (ou sua lógica) se retroalimentando e se fortalecendo, fica mais evidente a tendência privatista tomada pelo bem estatal.

Fernando Yonezawa disse...

Caro Pedro!
Foste novamente preciso como um acupunturista do social!
Sim, ao final de tudo, o que tenho tentado deixar claro é que o Estado e o público são coisas diferentes, embora muito confundidas quando se faz discussões políticas.
O Estado é a primeira grande besta pan-fágica, que a tudo apreende como propriedade sua, ele é o primeiro grande latifundiário, privatizador refinado que faz parecer que sua propriedade seja de todos dizendo "eu sou papai Estado, darei água, educação, cultura, saúde, terra". Apenas um modo astuto de desapropriar a potência dos corpos.