Por uma clínica poética. Uma
clínica que ocorre no limbo, nas forças conectadas a partir dos encontros,
encontros clínicos que visam produzir novas máquinas, novos acoplamentos,
outros agenciamentos. O limbo, na botânica, designa o principal local da folha,
sendo uma região achatada que recebe a maior quantidade de luz e de gás carbônico
para realizar a produção de oxigênio. Limbo é lugar de acoplamentos e conexões,
lugar mais permeável às forças afectivas do mundo, agenciador de conexões para
alimentar usinas de produção. Vivenciar o
mundo a partir dos fluxos produzidos na junção que se coloca como clínica: uma
máquina-órgão que se conecta a outra e transmuta-se em várias. A partir de um
corte transversal, produz um fluxo que não para de buscar sua efetivação. Nesta
perspectiva, há uma radicalidade na destituição de certo lugar de saber próprio
da prática clínica convencional, vinculando-se a um processo de busca de
criação de máquinas desejantes nos envolvidos.
Uma
clínica que se pretende poética, rompe os campos que separam os corpos,
materiais e imateriais, como entidades dissociadas, criando algumas misturas,
uma transversal, que possibilite ao fluxo sua efetivação.
O
poético articula-se a poiesis[1],
termo grego que tem o sentido de criação, produção, articulando-se, portanto,
as máquinas desejantes enquanto usinas de produção de desejos em conexões e
articulações que constroem uma usina produtora de si e do mundo. O poético
articula-se a clínica quando criam-se máquinas de efetivação de desejos. Esta
criação só acontece nos encontros dos corpos, visíveis e invisíveis que atualizam
uma clínica vinculada às linhas de fuga[2],
linhas que visam explodir o que está estratificado no interior do próprio
processo, fazer vazar o que está organizado, isolado e separado, passando a
proceder por conexões.
Nesse processamento, não há
hierarquias entre humanos e inumanos, visível e invisível. O que há são
agenciamentos, acoplamentos que se vinculam aos movimentos de proliferação da
vida. Devires[3]
agenciados por uma clínica que cultiva tais modos de encontros.
A proposta de uma clínica poética se
vincula a uma saúde que não se processa por adaptações, mas por alianças com o
caos, com o inesperado e o inusitado da vida. A produção de uma saúde frágil,
pois esta não busca unicamente estabilizações fixas, isto seria, nesta
perspectiva clínica, o próprio adoece. Propõe a reconexão dos processos vitais
à instabilidade e à imprevisibilidade que são próprios da vida, como presente no
conceito de grande saúde criado por
Nietzsche (1998).
Face ao adoecimento causado pelas estabilizações e
mortificações presentes nas práticas de vidas atuais e cotidianas, a grande saúde vincula-se à potência dos
encontros, e também a amplitude dos corpos na sua abertura às tensões diárias,
para além das quietudes promovidas pelas identidades. Identidades como fixação
daquilo que é comum ao coletivo, ao que apazigua as diferenciações que ocorrem
constantemente.
Nessa perspectiva, uma clínica poética como uma grande saúde é inseparável de um
aprendizado de si, dos modos de existência e dos escapes às políticas de
controle, ao se desvincular da ideia de uma clínica para o sucesso e para o
vencedor, de uma clínica solucionadora de problemas já prontos e já formulados,
que produz como contrapartida um encadeamento de decepções, fracassos e
adoecimentos diante da não efetivação das estabilidades prometidas.
Uma clínica poética está aberta a utilização de
elementos estéticos para produzir afecções que gerem corpos de sensação. Sua
atuação se dá nesses corpos de sensações criados por agenciamentos clínicos.
Esta clínica poética articula-se a vontade de potencializar tais corpos,
minimizando cada vez mais as mediações perceptivas e interpretativas, que
estabilizam os signos e o mundo.
[1] Faz referencia ao termo autopoiesis cunhado por Francisco Varela
e Humberto Maturana que designa os processos auto-criativos presentes na
natureza e que Guattari (1992) utiliza para conceitualizar as “máquinas
desejantes”.
[2] Termo de Gilles Deleuze e Félix
Guattari (1995) citado em Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia – vol. I.
[3] Devir refere-se ao paralelismo, à mistura entre duas ou mais camadas, em
que a organização sobre um deles transforma-se na organização sobre o outro, em
uma captura mútua de códigos, aumento de valência, assegurando a
desterritorialização de um dos termos e a reterritorialização do outro, os
devires se encadeiam e se revezam de acordo com a circulação de intensidades
que empurra essa mútua desterritorialização. (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
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