Devir é um conceito da Filosofia e denomina transformação intensa da vida, a partir dos encontros que construímos. Inspirados por este conceito, oferecemos nosso espaço e nosso trabalho para que possamos produzir transformações, as quais sejam por uma vida alegre, criativa e engajada social, política, ecológica e eticamente.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Por uma Clínica Poética


Por uma clínica poética. Uma clínica que ocorre no limbo, nas forças conectadas a partir dos encontros, encontros clínicos que visam produzir novas máquinas, novos acoplamentos, outros agenciamentos. O limbo, na botânica, designa o principal local da folha, sendo uma região achatada que recebe a maior quantidade de luz e de gás carbônico para realizar a produção de oxigênio. Limbo é lugar de acoplamentos e conexões, lugar mais permeável às forças afectivas do mundo, agenciador de conexões para alimentar usinas de produção.  Vivenciar o mundo a partir dos fluxos produzidos na junção que se coloca como clínica: uma máquina-órgão que se conecta a outra e transmuta-se em várias. A partir de um corte transversal, produz um fluxo que não para de buscar sua efetivação. Nesta perspectiva, há uma radicalidade na destituição de certo lugar de saber próprio da prática clínica convencional, vinculando-se a um processo de busca de criação de máquinas desejantes nos envolvidos.

Uma clínica que se pretende poética, rompe os campos que separam os corpos, materiais e imateriais, como entidades dissociadas, criando algumas misturas, uma transversal, que possibilite ao fluxo sua efetivação.

                        O poético articula-se a poiesis[1], termo grego que tem o sentido de criação, produção, articulando-se, portanto, as máquinas desejantes enquanto usinas de produção de desejos em conexões e articulações que constroem uma usina produtora de si e do mundo. O poético articula-se a clínica quando criam-se máquinas de efetivação de desejos. Esta criação só acontece nos encontros dos corpos, visíveis e invisíveis que atualizam uma clínica vinculada às linhas de fuga[2], linhas que visam explodir o que está estratificado no interior do próprio processo, fazer vazar o que está organizado, isolado e separado, passando a proceder por conexões.

            Nesse processamento, não há hierarquias entre humanos e inumanos, visível e invisível. O que há são agenciamentos, acoplamentos que se vinculam aos movimentos de proliferação da vida. Devires[3] agenciados por uma clínica que cultiva tais modos de encontros.

            A proposta de uma clínica poética se vincula a uma saúde que não se processa por adaptações, mas por alianças com o caos, com o inesperado e o inusitado da vida. A produção de uma saúde frágil, pois esta não busca unicamente estabilizações fixas, isto seria, nesta perspectiva clínica, o próprio adoece. Propõe a reconexão dos processos vitais à instabilidade e à imprevisibilidade que são próprios da vida, como presente no conceito de grande saúde criado por Nietzsche (1998).

Face ao adoecimento causado pelas estabilizações e mortificações presentes nas práticas de vidas atuais e cotidianas, a grande saúde vincula-se à potência dos encontros, e também a amplitude dos corpos na sua abertura às tensões diárias, para além das quietudes promovidas pelas identidades. Identidades como fixação daquilo que é comum ao coletivo, ao que apazigua as diferenciações que ocorrem constantemente.

Nessa perspectiva, uma clínica poética como uma grande saúde é inseparável de um aprendizado de si, dos modos de existência e dos escapes às políticas de controle, ao se desvincular da ideia de uma clínica para o sucesso e para o vencedor, de uma clínica solucionadora de problemas já prontos e já formulados, que produz como contrapartida um encadeamento de decepções, fracassos e adoecimentos diante da não efetivação das estabilidades prometidas.
Uma clínica poética está aberta a utilização de elementos estéticos para produzir afecções que gerem corpos de sensação. Sua atuação se dá nesses corpos de sensações criados por agenciamentos clínicos. Esta clínica poética articula-se a vontade de potencializar tais corpos, minimizando cada vez mais as mediações perceptivas e interpretativas, que estabilizam os signos e o mundo.


[1] Faz referencia ao termo autopoiesis cunhado por Francisco Varela e Humberto Maturana que designa os processos auto-criativos presentes na natureza e que Guattari (1992) utiliza para conceitualizar as “máquinas desejantes”.
[2] Termo de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) citado em Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia – vol. I.
[3] Devir refere-se ao paralelismo, à mistura entre duas ou mais camadas, em que a organização sobre um deles transforma-se na organização sobre o outro, em uma captura mútua de códigos, aumento de valência, assegurando a desterritorialização de um dos termos e a reterritorialização do outro, os devires se encadeiam e se revezam de acordo com a circulação de intensidades que empurra essa mútua desterritorialização. (DELEUZE; GUATTARI, 1995).

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