Devir é um conceito da Filosofia e denomina transformação intensa da vida, a partir dos encontros que construímos. Inspirados por este conceito, oferecemos nosso espaço e nosso trabalho para que possamos produzir transformações, as quais sejam por uma vida alegre, criativa e engajada social, política, ecológica e eticamente.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Umas palavrinhas sobre a intervenção policial na Cracolância e em Pinheirinho.










Atrevemo-nos a tecer algumas considerações um tanto desconfortáveis e constrangedoras diante do que temos visto a respeito das intervenções fascistas ordenadas pelos tucanos e executadas – literalmente executadas - pelas malévolas ovelhas policiais.

Niilismo derrotado e canceroso: pensar que sem a proteção da polícia não há solução, ou o discurso do "sofrimento do viciado". É preciso, ainda mais uma vez, que se diga que força militar é constituída pela violência, não há boa polícia, assim como não há bom Estado, porque ambos fazem parte do mesmo agenciamento violador da vida. E disso um Estado de esquerda não está livre também, porque ela é a primeira em crer num grande e bondoso Estado...

Além disso, este tal sofrimento é um sofrimento inventado, um sofrimento impingido aos viciados. Certamente que sofrem, mas seu sofrimento, também certamente, não é nem de perto aquele que o saber dominante da Psicologia, da Educação, da Psiquiatria, da Mídia, da Medicina, da Igreja (que é outra igreja depois da Medicina) das Secretarias de Segurança ou Saúde lhes colocam.

Portanto, a internação compulsória não é uma forma do Estado assumir a responsabilidade e cuidado total do sujeito usuário que perdeu a sua capacidade de julgamento, mas, pelo contrário, é na verdade uma forma de atribuir ao sujeito/individuo a responsabilidade absoluta de sua condição, isentando a conjectura social no que se refere ao fomento de uma realidade propícia para a existência dessa problemática: a realidade social é que é a primeira viciada!

Refinamento do niilismo: colocar na violência policial mais um motivo para se emitir o recorrente discurso da defesa dos Direitos Humanos. Se alguém já leu de fato a carta dos Direitos Universais do Homem com uma pequena dose de crítica e questionamento, vai perceber que ela está toda atravessada de um querer reacionário e reativo, privilegiando valores muito mais que escravos e produtores de submissão. É como diz Deleuze, os direitos humanos se tornaram a nova tábua de valores eternos (DELEUZE, G. "Conversações" - p.152), tais como os 10 mandamentos cristãos. O discurso dos direitos humanos não passa de nova moral, nova forma de submissão a um modo de vida dominante e reativo. Ainda nas palavras deleuzeanas, estas tábuas de valores são noções puramente abstratas, idealizadas. Que dizer, trata-se de noções que em nenhum momento se tornam capazes de perfazer o que de fato ocorre à vida e, tampouco, de reverter as reais violências contra ela cometidas. Não há direitos que não sejam emissões de um aparelho estatal. Assim, os direitos humanos são os primeiros a violar a vida, quando colocam explícita e desavergonhadamente, em muitos de seus pontos, que objetivam manter a ordem e impedir conflitos. Há uma violação de base na carta dos direitos humanos, que é a de igualar a vida a um estado de direito, ou seja, a um conjunto de princípios régios, leis abstratas, puramente ideológicas e pré-concebidas. A vida é igualada a uma paz ossificada, conformada. Quanta violência já não vimos acontecer, justificada pelos direitos humanos???!!! Quantos assistentes sociais, psicólogos, padres (que são outros padres, depois dos psicólogos e educadores) e educadores já não vimos (em nossa experiência profissional) tiranizar meninos de rua trancafiando-os em instituições totais, em nome dos direitos humanos!!! Ora, a vida não é um direito, a vida é um fato. E os fatos são feitos de afetos, não de leis! Por exemplo, já vimos a seguinte prática acontecer na cidade de Campinas: os meninos de rua, assistidos por uma ONG, estavam impedidos de circular na cidade, porque, segundo uma das gestoras desta ONG - instituição religiosa católica, por sinal -, uma vez que eram meninos de rua, já estavam com os direitos violados - o direito à moradia, à saúde etc. - e, portanto, também já não tinham mais o direito de ir e vir.

Ora, não é só uma questão de apropriações tortuosas e malévolas. Muito pior, há um valor fundante deste tipo de discurso e que já consta na carta de leis dos direitos humanos.

Como o filósofo Slavoj Zizek sempre ressalta, a ideologia, mais que uma forma de apresentar soluções míticas e místicas para os problemas do mundo, é responsável também pela “invenção” de problemáticas (estabelecendo interpretações unilaterais da realidade comprometidas com determinados interesses). Isso nos compele a pensar que a cracolândia sempre esteve lá, mas por qual motivo se tornou um problema a ser “combatido” apenas recentemente? de que forma a ideologia se manifesta na ocupação da cracolândia?

Direitos humanos são muito pouco para enfrentar cassetetes, gás de pimenta, tiros... até quando será este o nosso único discurso (com aspirações revolucionárias)?? A ideologia anuncia retumbante: a drogadição é um problema social, de saúde pública, a intervenção policial fere os direitos humanos! E completa: o usuário deve ser tratado! O Estado deve dar moradia, é direito de todo homem! O que acontece nas intermediações é completa e estrategicamente ignorado. Entre a droga e o drogadito, entre o morador de rua e a ocupação, existe uma relação, relação esta que é composta a partir de um mundo. A forma que o sujeito estabelece relação com a droga deve ser lembrada.

Precisamos ainda lembrar, que as vidas dos adictos em crack e dos ocupantes de Pinheirinho não se restringem à droga, nem a violência, a pobreza e ao crime que sofrem ou cometem. Aliás, muito pelo contrário, estas vidas só se tornam violentas, elas não são violentas. E elas se tornam violentas na medida justamente em que todas as práticas e discursos que passam a atravessá-las são já violadores, são já baseados em violar uma segunda vez aquilo que já estava violado por inúmeros fatores sociais, políticos, históricos, desejantes. São vidas que haviam sido violadas, mas se tornam violentas só a partir do momento em que estas práticas de natureza estatal entram em ação. Contudo, esta violação inicial não é uma violação dos direitos, é uma violação da vida e do viver, violação da potência. Não estamos recaindo no problema de determinar e pensar, de fora, o que se passa dentro dos usuários de crack. Diversamente, estamos falando da violação da vida, a qual ultrapassa e não se restringe à vida subjetiva dos usuários.

Podemos, portanto, dizer que o que ocorre na Cracolândia e em Pinheirinho é uma tentativa de reorganização dos espaços de exclusão. De repente, aquilo que era dejeto, abjeto, torna-se objeto... A tentativa de remanejamento do espaço de exclusão, promovendo sua institucionalização totalitária - inclusive sob a possibilidade da internação, remoção e realocação involuntária - gerou a descentralização e disseminação de uma multidão de subprodutos no espaço urbano: forma de resistência que não é revolucionária, mas, na verdade, tende a legitimar e justificar uma reação do aparato estatal, aumentando suas forças de repressão/opressão e sobredeterminação.

A Cracolândia e Pinheirinho, apesar de não institucionalizados, eram um depositário de dejetos bem localizado na malha estatal – já previsto e necessário no corpo social -. Cracolândia e Pinheirinho eram uma para-instituição total, em outras palavras. Diante disto, o Estado, além de reprimir, performatiza, formaliza os corpos – ação “educativa” -, dando lhes uma materialidade que não lhes pertence, impingindo um novo corpo a estas pessoas, novo lugar de origem e identificação, nova roupagem, outros e novos ferimentos, nova visibilidade, de modo a localizá-los e posicioná-los num feixe de discursos e diagnósticos sanitários ou sociais – uma nova oficialidade, desta vez, reconhecíveis, tratáveis e, claro, tranqüilizantes para certas classes sociais e afetivas (porque há muitos pobres com desejo burguês). O lixo social, antes relegado a um aterro bem circunscrito, passa a ser redistribuído numa rede de instituições - polícia, psiquiatria e psicologia, assistência social -, redirecionado para novos pontos cegos do espaço urbano, ou até, provavelmente, para aterros sanitários reais, na forma de cadáveres indigentes, quase como se se admitisse de fato que são lixos, agora, não mais vivos – alteração mais radical da materialidade dos corpos.

Escrito por PEDRO HENRIQUE L. COSTA e FERNANDO YONEZAWA

2 comentários:

Tânia Marques disse...

Essas "palavrinhas" sobre a intervenção policial na Cracolândia e em Pinheirinho afectaram com intensidades inexprimíveis o meu espírito. Parabéns aos autores pela lucidez necessária e pela paixão à vida que instigam no leitor. Uma vida plena de devires alegres aos dois e a noção de que eu assino embaixo dessas observações. Beijos. Tânia
http://contosrizomaticos.blogspot.com
http://palavraseimagensposmodernas.blogspot.com

Tânia Marques disse...

Amigos, compartilhei o link dessa matéria no meu Blog Palavras e Imagens
http://wwwmarquesiano.blogspot.com

Se houver algum senão, informem-me para que eu a retire do blog. Matéria identificada com os devidos créditos e referências.
Abraços amigos.