Devir é um conceito da Filosofia e denomina transformação intensa da vida, a partir dos encontros que construímos. Inspirados por este conceito, oferecemos nosso espaço e nosso trabalho para que possamos produzir transformações, as quais sejam por uma vida alegre, criativa e engajada social, política, ecológica e eticamente.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

devir-animal para desedipianizar e também para nos fazer mais fortes

















Hoje vi um vídeo http://www.facebook.com/video/video.php?v=1442880264742 postado no Facebook pela Profa. Maríllia Muylaert (uma de minhas grandes mestras), que mostrava um homem que vivia junto de leões como se fosse parte deles. Já havia visto um caso ainda mais extremo, de um homem que vivia com lobos (fotos à esquerda): era todo descabelado, chegava a lambê-los e mordê-los, e tinha cicatrizes no rosto, por causa das brincadeiras naturais dos seus companheiros bichos. Daí, lembrei de algo que li há alguns dias em uma reportagem, que falava de pessoas que criam dezenas de animais e supostamente teriam uma compulsão por criá-los. http://f5.folha.uol.com.br/estranho/986840-ciencia-tenta-explicar-compulsao-de-pessoas-por-acumular-animais.shtml

Trata-se de pessoas que criam dezenas e às vezes centenas de cães, gatos ou outros bichos.
Segundo os ditos especialistas consultados, as pessoas teriam uma espécie de vício em criar animais. Estas pessoas estariam tentando superar um trauma ou buscando preencher um vazio na vida.

Gostaria de deixar manifesto que, como trabalhador da área Psi, como terapeuta e pesquisador, discordo terminantemente deste tipo de explicação. E discordo duplamente, pelo fato da mídia compactuar com um poder médico psiquiátrico que tem apreço por patologizar os modos de vida mais formidáveis, ou mesmo alheios à lógica dominante. É preciso deixar claro: essa explicação dita científica e este tipo de publicação midiática serve apenas para chamar as pessoas de doentes e alimentar uma profunda incompreensão (nos termos spinozanos) e violação das diferenças.

Por que, por exemplo, não se chama e doentes esses latifundiários que têm compulsão por destruir florestas para criar suas milhares de cabeças de gado, ou por assassinar tribos indígenas e comunidades campesinas para plantar cana de açúcar???!!!

Sinto vergonha destes profissionais Psi (psicólogos, psiquiatras, psicopedagogos etc.) que aparecem na mídia para difamar as diferenças, as singularidades e multiplicidades de que somos capazes.

Mas alerto: não somos todos os profissionais Psi que pensamos a partir desta estirpe baixa de conceitos.

Viver com 60 cachorros, 100 gatos, viver no meio de leões ou lobos, mordendo-os, dormindo com eles, próximo de seus pêlos, de seus cheiros fortes, de seu jeito saudavelmente instintivo de agir: não seria esta uma manifestação de alegria, de delicadeza, de parceria? Não seria uma profunda sensibilidade, uma imensa capacidade de transformar o humano que se é em algo mais nobre do que este animal reativo, reacionário, amansado e adestrado que somos?

Para nós, terapeutas materialistas-moleculares, Esquizoanalistas (quer se goste desse nome, ou não) não são casos de traumas ou necessidade de preencher um vazio. Não são doentes ou viciados. Não têm nada de errado, simplesmente. Pelo contrário, têm tudo de mais potente e original. São, para nós, casos de pessoas repletas (ao invés de serem faltosas), já inteiramente preenchidas de afetos genuínos e nobres pelos animais. Não são pessoas que tratam os cães como filhos, como humanos; pelo contrário, são pessoas que, como dizia Deleuze, se tornaram capazes de ter uma relação animal com o animal, ou seja, tornaram-se um pouco animais, tornaram-se capazes de aliar-se delicadamente aos animais, respeitando suas animalidades. São pessoas que devém-animal e se tornam um tipo de animal que não é mais apenas um bíbede, branco, europeizado, capitalista, macho, vencedor... São pessoas repletas de devires-animal, de um tipo de amor muito mais complexo e capaz de afeto que esse amor edipiano e civilizatório que muitos têm pelos animais. São pessoas que de fato respeitam os animais, tornaram-se capazes de um respeito muito mais elevado que este respeito humanizado que faz com que respeitemos os animais apenas na medida em que ficamos colocando neles imagens de atos e sentimentos humanos, ou seja, só respeitam os animais quando os humanizam e os tratam a partir da identidade, a partir da mesquinharia de apenas respeitar aquilo que se pode igualar a nós. Ora, é preciso tratar os animais como animais! É preciso nos tornarmos animais com os animais!

Deixo muito claro que, para mim, estas pessoas que vivem com tantos animais orgulham nossa espécie, honram o pouco de pêlos e caninos que ainda temos. São capazes de um tipo de força que só os não corruptos podem ser capazes: aproximar-se dos instintos e torná-los algo da mais potente beleza.
Por isso é que Nietzsche define o homem corrupto, a raça de homens corruptos como sendo aqueles que abandonaram seus instintos, sua nobreza.

Faço um ode às pessoas capazes de afetos tão nobres quanto viver com inúmeros animais, a começar pelos seus devires-animal!!
Animais são animais... e alguns humanos, ainda bem, são também!


2 comentários:

Claudia Sousa disse...

Lembrei (não sei se você se lembra) de ter te falado que, mais velha, quero ter uma casa lá no mato e ser como a Hilda Hilst: solitária, cercada de 20 mil animais e poetizar. Hoje me julgariam e me rotulariam como uma" fujona da humanidade". Parece que estar entre animais é abandonar a humanidade. Qualquer bestialidade cotidiana deve ser extirpada, reprimida, encarcerada. Valoriza-se as grandes racionalidades que destroem tudo.
O que eu sinto é que eu tenho tido experiências transformadoras quando mais próxima da minha animalidade. Aprendo muito com o Babu, que me cede um pouco do seu encanto de bicho, embora já bastante domesticado. Legal mesmo é perceber que ele tem um cheiro todo próprio e que, mesmo domesticado, quando vê um pássaro, um inseto, emite seus sons ancestrais e vai pra algum lugar fascinante.

Fernando Yonezawa disse...

Oi Claudia, querida!

Também vivo às voltas com as peculiaridades felinas. Eles me ensinam um tipo de afeição desapegada, companheira, mas que não privatiza...
Estranho é como muitas religiões ou teorias falam de amor, mas não pensam na fúria como uma forma de afeição também. Estranho como já se matou muito mais em nome do amor e da razão do que em nome da fúria, do afeto selvagem, bestial! Há tantas razões perfeitamente verdadeiras, perfeitamente lógicas, mas inteiramente doentes.
Beijos!!