Devir é um conceito da Filosofia e denomina transformação intensa da vida, a partir dos encontros que construímos. Inspirados por este conceito, oferecemos nosso espaço e nosso trabalho para que possamos produzir transformações, as quais sejam por uma vida alegre, criativa e engajada social, política, ecológica e eticamente.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Para que uma greve? Parte 2) sonhar com uma quebra

Bem, continuando a postagem da última semana, deixo aqui mais algumas tentativas de reflexão.
Semana passada terminei num impasse, num beco. Ao mesmo tempo que vejo a necessidade da greve, ela parece ser mais um signo da ausência de saída para o problema da exploração no trabalho, para o sucateamento progressivo da educação: como pode um instrumento de confronto ao Estado estar já instituído por ele mesmo?

É a partir de tomar a greve como este impasse absurdo é que gostaria de começar a pensar. Ora, como impasse, a greve é justamente algo em que se deve pensar. Uma coisa que Deleuze diz junto com Nietzsche é: certamente o homem é capaz de pensar, mas ele só o é diante daquilo que o força a pensar; o pensamento só advém de uma violência. Pois então, a greve, na medida que me parece um impasse, deve ser aquilo que nos força a pensar. Pensar em que? Em soluções? Em estratégias? Ou pensar a própria greve enquanto se tornou um princípio e não mais um meio?

Acredito que seja essa uma questão: na medida em que se esqueceu que a greve é um meio, se perdeu também a possibilidade de tomá-la como algo que nos obriga a elaborar outra coisa a partir dela. Não deveríamos pensar no que fazer na greve, mas o que fazer a partir da greve. Vou lançar mão de mais um conceito deleuzo-guattariano: corpo-sem-órgãos (CsO). No primeiro uso que estes autores fazem deste conceito, em O Anti-Édipo - Capitalismo e Esquizofrenia, o  CsO aparece como sendo um corte disjuntivo que acontece às organizações instituídas socialmente e ao conjunto de articulações de modos de vida, valores e políticas vigentes. Quer dizer, o CsO é justamente um corpo de desarticulação imediata dos organismos, corpos, conjunções institucionais que sustentam o modo de vida hegemônico. O CsO é feito de fluxos de desmonte, "sabotagem", interrupção e quebra de maneiras de funcionar, pensar, sentir e agir instituídas. Ele produz um impasse, uma violência às instituições. Neste sentido, se tomarmos a greve como um grande impasse, também podemos tê-la como uma espécie de CsO que se instala numa determinada instituição.


Pareço me contradizer... mas não. É que estou partindo justamente de onde parei antes: a greve é um impasse terrível. Mas pensar a greve, diante dessa paralisia, não é mais pensar no que acontece dentro dela, mas pensar ela mesma, ou seja, pensar de que modo ela é um impasse que nos leva, não à solução dos problemas que vivemos educacionalmente, seja na universidade, seja na fábrica, no trabalho cotidiano. A greve, se tomada por CsO, por interrupção, deve servir para se pensar uma nova arma, ou ainda, outra realidade. Enquanto se acha que a greve é um princípio de luta, ainda se está nas questões previstas pelo Estado, ainda se está no campo dos direitos ordenada e comportadamente constituídos. Mas a violência do impasse nos coloca a pensar quando este CsO se torna capaz de secretar inesperadas e novas formas de relação e modos de vida. A greve deveria ser capaz de realmente enguiçar uma instituição, fazer intervir um CsO, um corpo coletivo de inéditas realidades institucionais. Com a greve, ao invés de pensarmos em formas já mais do que caducas de lutar, as quais só postergam a repetição dos mesmos problemas, poderíamos pensar em um novo modelo educacional, em um novo espaço de educação superior, pelo menos, para as ciências humanas. A greve é um instrumento para que? Resolver problemas atuais que voltarão a acontecer exatamente do mesmo jeito daqui a 4 ou 5 anos? Ou a greve serve para pararmos tudo por um momento, injetarmos uma quebra real na aparelhagem universitária , para pesquisarmos e criarmos outro modelo universitário? Se a tomamos como impasse, fazemos dela um CsO, um meio de abertura e passagem para ousadias insuspeitas. Em 100 dias é impossível que as elites pensantes que pretendemos ser os professores não encontrem uma saída muito mais inesperada e surpreendente. Tendo advogados, economistas, estudiosos de política certos, creio que facilmente elaboraríamos um modelo de gestão, financiamento e infra-estrutura completamente distinto.

Podem me dizer que é impossível, que é mais um sonho infantil. Mas, o que os fatos mostram é que este modelo atual é o impossível, que a greve é impossível, que a negociação é impossível e que infantis já estamos sendo, pagando mico na frente da população da cidade, da TV, achando que estamos incomodando em alguma coisa, quando ninguém está prestando atenção em nós. Estamos literalmente, sendo crianças pidonchas, choronas e fiasquentas, pedindo a papai Estado para nos olhar. Horrível ceninha edipiana que acontece em escala nacional.

Se pararmos para fazer uma retrospectiva reflexiva, veremos que tudo o que foi feito durante a greve - incluindo a própria instauração da greve - estava já atrasado, agindo reativamente. Era certo que o governo lançaria uma proposta cínica e ofensiva para dividir o movimento, mas esperamos acontecer para depois reagirmos. Antes ainda, com a expansão universitária, era também certo que enfrentaríamos os problemas que estamos vivendo, mas deixamos acumular por anos para então se fazer greve... era certo que a imprensa iria ignorar, mas só depois de vermos acontecer começamos a ir atrás de informar a população... tudo previsto, toda reação já tardia, reativa. A Psicologia, por exemplo, corre o risco de, mesmo com o fim da greve, parar logo no início do ano que vem, pois já não há muita condição de seguir com o curso. Os professores temporários - se é que isso não aconteceu só comigo - tiveram seu contrato renovado apenas até janeiro, mas não há nenhuma garantia de novos concursos e, mesmo que aconteçam, não serão efetivados até fevereiro, provavelmente. Tudo isso era previsível e só agora se coloca tudo em questão... Ora, a greve deveria ser, enquanto um CsO, um golpe de quebra na maquinaria universitária, ser capaz de antecipar-se, criar problemas novos, não de se restringir a correr atrás de danos acumulados.

Só quando uma greve for feita sem motivo atual algum, sem passividade alguma é que acredito que será de fato legítima. A greve deveria ser visionária, intempestiva, ser capaz de se antecipar e, principalmente de inventar realidades.

É por isso que falo em pensar na própria greve, em seus objetivos, em suas possibilidades, em seu lugar instrumental, sua temporalidade, não apenas enquanto aquilo que ela é, mas aquilo que ela pode se tornar, pode devir. A greve não tem obrigação alguma de ser aquilo que sempre veio sendo, de se prestar àquilo que sempre veio servindo. Se há um impasse, é preciso sair dele mudando as questões...


5 comentários:

Pedro Henrique L. Costa disse...

...então, a greve é a nova instituição que "pede" pela fomentação de um CsO, pelo instituinte... linha de fuga dentro da Linha de Fuga, linhas menores e outras menoridades... e agora?

Fernando Yonezawa disse...

E agora? Sempre disse que isso tudo é um impasse. Me sinto mais do que amarrado... a liberdade que resta parece ser esta pífia liberdade de pensamento, coisa kantiana... liberdade de expressão??? não sou revista Veja para falar disso... E agora?

Alexandre Missel disse...

E Agora? Segue fazendo teus apontamentos de guerra... e sem se importunar com as capturas, seguir diferindo no máximo que der... as capturas vão ficando na patente... Texto flecha... arco greve... Bj

Pedro Henrique L. Costa disse... disse...

Há também a "coisa" sartreana. Liberdade não como escolha, mas liberdade de escolha como condenação. Acho que "o não há mais o que ser feito" pede a complementação "dentro dos limites, critérios e disposições que escolhi para minha existência" E agora o que for circunstância e naquilo em que vc estiver lançado, optar por sair ou nadar, produzindo ondulações que produzam algo novo. Por isso eu me orgulho de vc cara... há uma centelha de esperança quando vejo pessoas da educação engajadas e com um pensamento (e não só pensamento) como tal... Uma pergunta, há previsão para retorno das aulas.

Fernando Yonezawa disse...

Fala Pedrão, parceiro da guerrilha filosófica!
Pois é, acho paradoxal e ambígua minha relação com esta máxima sartreana. É fantástico e genial que ele tenha, filosoficamente, transformado a liberdade em substância constituinte do ser. Veja que interessante: em filosofia careta a substância é o ser, ou a razão, etc. O golpe de Sartre é fazer da liberdade uma substância!! Isso nos coloca em situação delicada: ou pegamos a vida com a mão, como diz o meu amigo Alexandre Missel, ou fingimos que não somos nós que habitamos a nossa vida. Estamos espremidos pela liberdade que nos acoça de frente. É um golpe genial de Sartre. Por outro lado, não gosto da noção de liberdade como escolha, pois pressupõe uma consciência e ignora (como Sarte o faz deliberadamente), que estamos mergulhados num inconsciente, o qual não é instância psíquica, mas tecido social e político do qual fazemos parte, que compomos e que nos produz. Liberdade como escolha é o que o capital já nos dá o tempo inteiro: escolha o seu carro, com a sua cara de aventureiro ou papai de família; escolha o seu celular, de acordo com a sua importância; escolha o seu estilo, comprando na Hering, na C&A; escolha o seu jeito de amar, procurando entre as opções da internet, da agência ou da balada. Liberdade como escolha pressupõe consumo, aquisição de imagens e produtos pré-fabricados em massa. Mas já gosto mais de um termo que uma das minhas professoras de esquizoanálise usava: decisão. É certo que somos o tempo todo impelidos por forças que não escolhemos, mas já estão aí, nos compondo e nos atravessando. Mas a decisão está em afirmar ou negar esta composição de forças, agir sobre ela, ou padecer dela... parece ser uma noção de liberdade mais nietzscheana, mais dotada de um chamamento agressivo para que nos posicionemos claramente, sem acalentadores relativismos, sem a hesitação típica dos amedrontados.
Mas, quanto à greve, digo sempre. Não sou contra ela e a tomo por necessária. Só acho que precisamos ousar mais, esgarçar esta noção acabada e comportada de greve.