Devir é um conceito da Filosofia e denomina transformação intensa da vida, a partir dos encontros que construímos. Inspirados por este conceito, oferecemos nosso espaço e nosso trabalho para que possamos produzir transformações, as quais sejam por uma vida alegre, criativa e engajada social, política, ecológica e eticamente.

domingo, 19 de agosto de 2012

Para que uma greve? parte 1) Não creio em greve

Estamos passando por uma greve que deve estar perto de terminar em alguns dias. Não foi a greve mais longa que já houve, mas certamente uma das maiores: envolveu quase a totalidade das universidades federais do país.

Todos sabem que desde o início fui a favor da greve e de se lutar para conseguirmos melhorias. Contudo, tendo feito parte do comando de greve, tendo já participado de alguns movimentos políticos populares, como a luta estudantil quando era aluno de graduação e a luta pela "ressurreição" da cultura em Campinas, gostaria de compartilhar aqui algumas questões com que venho me debatendo há muitos anos. Como acho que vai ficar longo, vou postando semana a semana, em tópicos, as coisas que trago para compartilhar e discutir.

1) Não acredito em greve! Sou a favor de nossa greve na UFTM, mas não acredito nela. É como dizer que sei da força da natureza, mas não atribuo isso a Deus. Explico. Em primeiro lugar, a greve é um instrumento de luta, e não a luta ou o instrumento. Como instrumento a greve já é, atualmente, em tempos pós-modernos, o maior sintoma de esvaziamento do tecido político, enquanto o consideramos uma grande malha afetiva que atravessa os corpos e todo o campo social. A própria impotência em encontrarmos outro instrumento de luta coletiva atesta isso. Mas, acima de tudo, o que faz essa luta parecer risível para alguns ou até ser chamada de luta burguesa, talvez seja o fato de que a greve hoje é um direito. Atenção aos apressados homens brancos: não estou dizendo que não podemos fazer greve e não devamos lutar. Estou dizendo que fazer greve é algo que podemos enquanto instrumento e forma de luta. Só que isso que nossos corpos podem com força se transformou em algo que se nos concede, se nos permite: virou um direito, constituído desde o início da democratização do país, nos anos 80. Vejam que estupidez que só quando estamos muito convencidos de uma falácia é que acreditamos: o país se redemocratiza e ganha uma constituição que, tendo apenas uns 30 anos, já está velha. Achamos ainda que democracia é termos nosso poder de luta, nossa força de vida estabelecida em lei. Como se fosse a lei que nos desse essa potência, como se fosse da lei que nascesse a vida! Se houvesse uma democracia de fato, a greve não seria direito e, talvez, nem instrumento, mas uma verdadeira arma, uma garrafa incendiária. Todos sabem, não sou estruturalista, não sofro desse mal moderno velhaco. Mas, gosto quando os estruturalistas, mesmo não usando boas palavras (que ironia! justo eles que adoram a punheta linguística!), dizem que certas intervenções embora mudem certas relações sociais, não mudam as estruturas sociais. E a greve é algo desse tipo, um remédio para dor de cabeça, uma Novalgina, que não cura o tumor do tamanho de uma laranja que está no cérebro. Eu não queria ter direito à greve. Sinceramente, lutar para ganhar mais, para ter direito a aposentadoria decente, isso é muito pouco!! Nada disso garante que, por exemplo, eu não seja engolido pelo produtivismo acadêmico, no cotidiano, até que, depois de 30 anos (minha idade hoje) eu possa me aposentar sem saúde.
Fazer da greve um direito é algo extremamente anti-democrático, é  a prova de que nosso país nunca se redemocratizou. Além disso, pensando em termos éticos, considerando aspectos afetivos e entendendo que afetos são sempre constituídos social e coletivamente (não dentro de nossas cabeças individuais), vejo que fazer da greve um direito é ser piedoso com os medrosos, com os covardes conservadores e reativos. É para que os covardes não tenham medo de perder o emprego que a greve vira um direito. É para assegurar a presença desses covardes no movimento que o direito de parar se constitui. São esses que levam a vida como uma bola que rola ao sabor do morro que justificam o direito de greve. E vejam, estes são, no nosso caso, tanto os bundões e alienados que fogem da discussão política, quanto os homens de Estado. Esse é um dos motivos pelo qual não tenho como valor a luta de classes e nem em dialética. A escravidão está em todos os lados, sendo sustentada pelos escravos, estejam eles no poder, ou não. Nunca houve dois lados no mundo. Mais do que nunca o mundo tem cada vez mais vários lados funcionando em acordo unitário (exploratório, mesquinho, consumista...). Ora, eu também tenho um lado medroso, também gostaria de ter paz. Mas não é isso que garante a vida. Nietzsche deixa bem claro, assim como Marx. É a luta, o combate que faz a vida ser gestada, parida, inventada. Mas a greve não é a luta!
Outra prova encabulante da falência da greve desde seu início (neste ano e nos anos 80): a vergonha que senti quando fomos parar a rodovia com nossos cartazes e já estava tudo combinado com a polícia. Eu sentia o tempo todo que eu mesmo ria de mim! A greve é um instrumento mais do que reabsorvido! O mesmo digo das passeatas! As ruas de Paris têm passeatas quase que semanalmente e é um dos países mais direitosos e reacionários do mundo. (Todas as suas passeatas têm permissão da prefeitura.) Deleuze nos lembra que os movimentos de transformação não conseguem reais mudanças se não tiverem um mínimo capacidade de agressão às ordens e valores instituídos. As forças reativas nunca são sobrepujadas se não forem agredidas. Só uma vida muito escravizada tem medo ou pudor diante da fúria e da força agressão, quer dizer, é só do ponto de vista das ovelhas mansas, diz Nietzsche, que agredir se torna feio e maldoso. A greve como direito é um jeito bem assim, cínico e sórdido, de estancar a força agressiva de um movimento coletivo. Talvez um grande truque anti-democrático da redemocratização brasileira tenha sido este: nascer já instituindo a greve com valor de lei, ou seja, produz um efeito de verdade, mas não é a verdade do mundo vivido em si: faz nossa razão acreditar numa potência que nosso corpo, nosso afeto, não sentem de fato no cotidiano.
É claro, se é isso que temos para lutar, não vou trair ninguém. Meu sangue japonês não suporta a traição... Mas fico sentindo que já estamos nos traindo desde sempre. Feliz ou infelizmente, sou bem amarelo ainda, não sou tão pudico e branco a ponto de suportar a traição. Não aguento ser grevista, é um jeito baixo de nos trairmos a nós mesmos. Quando entrei para o comando de greve achei sinceramente que o movimento seria diferente, que havia juventude, força primaveril nessa luta. Mas justamente por fazer parte do comando, vi que estava bem enganado. Havia afetos jovens, sim, mas eles se dispersaram, foram dissolvidos entre os que, por já serem calejados pela vida partidária, aguentam o centralismo democrático (microfascista) dos senis sindicalistas e os que, como eu, desejam lutar, mas não dão conta da escravidão que existe dentro do próprio movimento de luta. É uma fraqueza? Pode ser... se ser forte é tolerar a escravidão... Não saio da greve para não trair os amigos da História, da Psico, os alunos, do Serviço Social etc. Mas não fico pagando mico frente a mim mesmo. Não quero ser motivo de piada para mim!
Tenho solução? Claro que não! Só porque questiono sou responsável por ter a solução sozinho? O questionamento é para todos nós.

11 comentários:

Anônimo disse...

Caro Yonezawa, importantes considerações e bem atinentes àquilo que discutíamos um tempo atrás. Continuo sem soluções e venho ainda adicionar a essa problemática outras questões: E os alunos? Como ficam? No começo da greve, ouvi de muitos alunos que a greve tb era deles (eles eram grevistas tb e não apenas apoiadores, o q eu já acho bastante questionável)e que reivindicavam vários itens específicos da realidade e condição estudantil . Os professores voltando, os alunos, bem provavelmente, voltam as aulas tb, mas afinal, alguma reivindicação deles foi verdadeiramente atendida??? Se a greve era deles tb, me soa estranho eles voltarem as atividades sem que nenhum pedido fosse atendido... Será que foram apenas utilizados pelos professores como "instrumento" que reforçasse a greve??? Dizer que eles eram grevistas e os fazer acreditar nisso, (ao invés de fazer com que reconheçam que a greve - - que não é deles - é importante e que deveriam se revoltar contra o Estado e não contra os professores) é uma estratégia poderosíssima e mais eficiente de pacificação (os alunos são os primeiros prejudicados em uma greve, mesmo que, de outro ponto de vista, sejam os mais beneficiados ao final...). E as outras reivindicações iniciais dos professores, foram atendidas????? Mesmo que cheguem a um consenso sobre as questões salariais e de carreira, os outros motivos que alicerçavam a greve (aqueles que vc havia ressaltado por mim) foram pelo menos parcialmente atendidos????? Isso me coloca uma pulga atrás, visto que sempre tive a impressão que as condições estruturais e profissionais da educação pública superior foram ruins e apenas quando se mexeu (ou deixou de mexer positivamente ) no bolso é que houve uma mobilização tão gigantesca.
---Seu amigo, Pedro Henrique L. Costa.

Fernando Yonezawa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fernando Yonezawa disse...

Pedrão! Prazer em tê-lo novamente como parceiro de reflexão! Foi tudo isso que me levou a sair do comando de greve. Nunca os alunos foram atendidos de fato e provavelmente não serão. Os professores que tínhamos um desejo de uma real luta ao lado dos alunos não tivemos força para estancar as forças reativas, centralistas e microfascistinhas dos chamados "experientes" professores(as) que estavam na liderança do sindicato local. Eu sinceramente ainda me vejo muito jovem e forte para esquecer que fui aluno, que vivi certas coisas, que devo imenso respeito a toda a molecada que compõe os discentes. Uma dia disse em assembléia: "somos servidores públicos e servimos primeiramente aos alunos, são eles nosso público imediato. Por isso defendo que não saiamos da greve enquanto a pauta deles não for atendida também." Sabe quantos votos a proposta que defendia teve a favor? Três... (incluindo a mim). Então, veja só... vc confiaria em professores assim? Eu não confio e meu maior temor, sinceramente, é que um dia passe a ser assim também. É muito fácil ser engolido pelas pobrezas e vilezas de uma instituição... e espero que eu tenha amigos para virem me dizer "cara, vc virou um pelego igual aos que criticava." Sozinho talvez eu não consiga, mas se tiver parceiros fortes, incluindo nisso os alunos, é bem possível que eu vá escapando, driblando, sobrevivendo.
Voltando ao que interessa: eu nunca duvidei da legitimidade da greve dos alunos. O que eu sempre duvidei foi da potência política, vital, ética da greve em si. Ou seja, sempre duvidei do fundamento, da questão inicial. Não adianta perguntarmos se fazemos ou não greve, se ela é legítima por parte dos alunos, por parte dos professores. Precisamos perguntar pela coisa inicial, pelo princípio: a greve em si, é ela algo que legitima o aspecto político da vida, da vida educacional? Eu sinceramente vejo que não. É como uma luta-livre daquelas em que a pancadaria é toda combinada. Patético, risível, dolorosamente divertido.

Daniel disse...

Olá Fernando.
Li sua postagem pouco depois de ter compartilhado o link no facebook, penso que esse texto seja muito precioso. Apesar de não ser mais aluno da UFTM, acho que todos os sujeitos afetados com a greve, principalmente os alunos, deveriam estar a par dessas ideias, apesar de que, na minha opinião, pouquíssimos se deram ao trabalho.
Após ter absorvido tais pensamentos, refleti por alguns momentos durante o dia. Ao anoitecer, me deparo com uma postagem curiosa na página da UFTM no facebook. Criticava uma frase que teria sido pichada em frente a um campus da universidade (“É com esta educação que o Brasil vai pra frente...”), dizendo que o pichador estaria se contradizendo, por ter sido mal-educado ao praticar tal ato.
Primeiramente, deixo claro que meus conhecimentos sobre a greve são limitados, visto que não sou mais aluno da mesma. Não participei em nenhum momento desta ou de outras greves da UFTM. Também não vi a pichação, e até então nem sabia da existência da mesma. Mas vamos aos fatos:
1- O autor da postagem confunde a educação que se refere à pedagogia (foco da greve em questão) com a educação que indica fineza, delicadeza, polidez. Aliás, ultimamente muita gente vem confundindo isso. Particularmente nunca tentei entrar na faculdade para me tornar uma pessoa mais fina.
2- Pelo que refleti com seu texto, acredito que a greve jamais terá resultados significativos. Talvez a pichação possa ser vista como uma forma (ainda que muito branda) de agressão às ordens e aos valores instituídos, sendo assim, mais eficiente que muitas outras atitudes dos grevistas.
3- O texto postado na página, extremamente curto, ganhou uma popularidade gigantesca em poucas horas, coisa que uma publicação mais extensa e trabalhada sobre o assunto jamais conseguiria. Sua postagem, por exemplo, com muito mais conteúdo, foi notado por poucos (nem para refutar apareceu alguém). Fora que diversas pessoas enaltecem a falta de educação do pichador, o chamando de hipócrita, mas nenhum desses comenta a enorme quantidade de erros gramaticais texto da postagem.
Realmente acho que a única coisa que a pichação depreda é o superego conservador desses alunos.

Pedro Henrique L. Costa. disse...

Fernando, eu questiono a legitimidade da posição dos alunos não pelo posicionamento estabelecidos por eles mesmo, mas principalmente pela forma que os tais professores "experientes" fizeram uso dessa potência a favor de seus interesses próprios (ou da classe/categoria docente, já operando aí uma dicotomia em relação aos discentes). Eu não tenho certeza se os alunos refletiram sobre isso, questionaram seu real papel na greve com a criticidade necessária, ou se foram apenas massa de manobra. Pelo o que vc está revelando, essa última possibilidade parece ser a mais próxima da realidade. Seria a hora então dos alunos se mobilizarem, junto aos diretórios ou não, e defenderem sua posição de grevistas, defendendo a coerência e sua força, pq três votos apenas, é um ato de traição!
E seria traição dupla se os alunos que se mantivessem de greve ficassem com falta, seria irônico, pois os professores que se queixavam da possibilidade de corte de ponto pelos reitores, estariam agindo da mesma forma que tanto repulsaram!!!!
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Daniel, essa pichação foi um ato educacional e educativo de altíssima sofisticação, altamente gentil, fino, polido, e delicado para com os ideais da que motivam a luta, para com o mundo e para com a vida.

Anônimo disse...

oi Fernando Yonezawa.
Muito massa seu texto.
Eu entendo que a greve como direito democrático não abala as estruturas do nosso tumor social. A luta requer um pouco mais de agressão, ou de desordem. Lendo esse texto me lembrou o caso das punks que foram presas na Russia, por fazerem uma "oração punk" para que a Virgem Maria as libertassem de Putin.
Mas tanto o caso da greve quanto o caso das PUSSY RIOT revelam de forma diferente, pelo menos em mim, a bundona e covarde que existe em cada um de nós... e isso é barra. Miriam Nobre

Fernando Yonezawa disse...

Primeiramente um fraterno Oi! à Miriam e Daniel, que são novos aqui no blog! Muito obrigado pelos seus preciosos comentários e pela coragem de participarem aqui.

Bom, concordo muito com o Pedro, quando diz que a pichação provavelmente foi bastante educativa e também com o Daniel, ao falar do pudor moral de certos alunos com relação à pichação e da confusão entre educação e uma aspiração a refinamento. Afinal, o que é refinamento? Ser civilizado e nunca cometer um ato de vandalismo, quando não pode haver nada mais sujo e violento do que cercear o acesso à educação, sucatear escolas, universidades e destroçar a saúde dos professores??!! E no fim, tal como a Miriam diz, há muita bundonice em nós...
Claro, eu nunca enfrentaria sozinho uma tropa de choque, mas teria muito gosto em atacar o congresso e tomá-lo, se houvesse parceiros para isso. Professores universitários prezam pela imagem de elite educacional e esquecem, por exemplo que, como Nietzsche diz, durante muitos séculos era impossível pensar uma nobreza que não fosse guerreira, agressiva, formada por homens, ao mesmo tempo, ferozes e conhecedores de artes, poesia e música.
Bom, Pedro, eu estive perto dos alunos e sei que, pelo menos alguns, estão sabendo do cinismo dos professores. Eles não são tontos... apenas são muitas vezes bem mais nobres que os próprios professores e não se permitem trair-nos. De todo modo, também acho que deveriam seguir em greve. Isso sim, me surpreenderia.

Fernando Bernardes disse...

Fernando, independente da greve, do seu sentimento de culpa mortal e de toda sua descrença no mundo (brincadeira hein?!), continue na sua luta de fazer desses pequenos zerruelas, pessoas mais críticas, criativas e conscientes. Em tempo de informação à velocidade da luz, tudo é possível pra quem ainda consegue acender uma fagulha de esperança através do pensamento (assim acredito). E cuidado com o café do shopping... uheuheuhe


Grande Abraço aos AMIGOS!

Fernando Bernardes

Pedro Henrique L. Costa disse...

Olha o Fernandópolis ae gente...
Some não cumpadi!!!! E endossando sua fala, temos que ter cuidado com as revoluções de shopping! haeehaheaheaheahah

Fernando Yonezawa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fernando Yonezawa disse...

Cacildis, Fernando! Tudo certo? Que bom que vc apareceu por aqui! Mas que raio de café no shopping? Vc me viu por lá, estudando enquanto espera a Angie sair da dança? Foi a última vez que fui lá. To ficando paranóico desse jeito...
Mas, sim! Como diz meu mestre de arte marcial. "É muito difícil ensinar alguém num mundo que se move a banda larga..."